sábado, 5 de novembro de 2016

A pregação expositiva

 [Resenha para o módulo "Estudo Bíblico Indutivo", da ECH]

Meditar na Lei do Senhor sempre foi uma preocupação para o povo de Deus em todos os séculos. A Palavra de Deus é o nosso alimento e aquilo que nos dá sabedoria, refrigério e crescimento espiritual. Por isso, é muito importante que saibamos nos nutrir dela.

Ao mesmo tempo em que cada cristão pode e deve buscar esse alimento diário, seja ele instruído ou não, existem também lados e profundidades da Escritura que são desvendados com maior estudo do texto bíblico. O Senhor, ao mesmo tempo em que ordena a todos buscar o conhecimento da Palavra individualmente, também designou alguns para pastores e mestres, o que significa que existem verdades e mandamentos na Escritura cujo aprendizado aprouve a Deus que fosse através do serviço de alguns irmãos em  específico, dedicados ao ministério da Palavra, e que usassem esse dom específico na edificação de todos. Nisso reside a importância do estudo bíblico além da mera prática devocional, como um meio de alimentar o rebanho e glorificar a Deus através do cuidado de suas ovelhas. Vemos isso, por exemplo, na pergunta do eunuco etíope, que, sem entender Isaías 53 pela mera leitura, indagou a Felipe: "Como poderei entender, se alguém não me ensinar?" (Atos 8:31). Assim, Deus nos fez um corpo, e temos necessidade dos dons uns dos outros, um dos quais é o estudo das pérolas profundas das Escrituras e o repasse delas de forma mais compreensível para todos.

Uma das formas mais seguras e proveitosas de se fazer isso é através da pregação expositiva. O esforço por expor o texto leva o pregador a se preocupar, primordialmente, em ser fiel ao texto. Ele se preocupa em expor o significado da Palavra na época em que foi escrita e também seu significado hoje. Assim, o pregador e as ovelhas são resguardados de darem ouvidos a doutrinas estranhas, hereges ou simplesmente rasas, para olhar com profundidade o que as Escrituras dizem.

Na realidade brasileira atual, isso se mostra muito necessário. O padrão normal para uma igreja local brasileira é ser deficiente no estudo e ensino da Palavra, com frequentes brechas a doutrinas estranhas ao evangelho e até mesmo pregações que falam de tudo, menos do texto-base. Infelizmente, é a realidade mais comum. Estórias, piadas e devaneios que vieram da própria mente do pregador, forçadas ao texto através de interpretações alegóricas; tudo isso é corriqueiro hoje. Assim, a pregação expositiva vem como um meio de sanar essa deficiência e alimentar os ouvintes com alimento sólido e verdadeiro. No Brasil, talvez estejamos acostumados a que o pastor prepare o sermão pensando: "Que palavra quero levar à igreja?" (escolhendo um tema, por exemplo). A pregação expositiva é um esforço em se aproximar mais da pergunta: "Que palavra Deus tem para trazer para a igreja?". Quando a pregação é sempre temática, alguns textos impopulares serão eternamente evitados; talvez aqueles que sejam pouco interessantes aos olhos humanos; talvez aqueles que falem sobre o pecado de alguém importante na igreja. Quando a pregação é expositiva, não há como fugir de qualquer trecho: todo texto deve ser eventualmente pregado. Assim, dá-se primazia ao que Deus quer falar através da Sua Palavra, e não a qualquer preferência humana.

Não devemos, porém, cair no grave erro de achar que a pregação expositiva é o único modo válido de pregar a Palavra de Deus. Não devemos jamais afirmar que só há pregação fiel quando há pregação expositiva. O povo de Deus viveu séculos em vários contextos diferentes e vários estilos diferentes de estudo e aprendizado, e a semente de Deus permaneceu neles, frutificando para Deus. Por mais que a pregação expositiva seja um bom método, é um método humano, e de forma nenhuma encerra todas as possibilidades do poder da Palavra. Às vezes Deus quererá falar um tema específico. Às vezes Deus terá uma exortação específica para os ouvintes. Não devemos engessar a pregação da Palavra de Deus nos moldes de um estudo intelectual e eternamente sequencial. Um dos maiores perigos para o pregadores desse método é deixar a pregação fria, mecânica, acadêmica, cheia de referências a comentários bíblicos e às línguas originais, mas com pouca aplicabilidade. A aplicação é a chave para salvar a pregação expositiva. Não devemos nunca esquecer que nossa sede não é por mais conhecimento técnico, é pela Palavra de Deus. Nossa alma não quer simplesmente estudar, quer se alimentar. Existe uma diferença sutil entre ter conhecimento técnico sobre trechos da Palavra de Deus (linhas interpretativas, termos ambíguos, contexto, etc.) e conhecimento da Palavra. O verdadeiro conhecimento liberta e transforma, alimentando a alma junto com a mente.

Em última instância, buscando ser fiéis a Deus na exposição da Palavra, não devemos deixar os ouvintes pensando simplesmente: "Como aquele pastor fez uma boa exegese!", e sim, "Por acaso não ardiam os nossos corações dentro de nós, enquanto ele nos expunha as Escrituras?" (Lucas 24:32).

quarta-feira, 19 de outubro de 2016

Mais um tipo de antinomianismo (antinomianismo dos juristas e religiosos)

[Escrito em Dez 2015]

[Comentário do livro "Como posso desenvolver uma consciência cristã?", de R.C. Sproul, parte 2]

Postei, há alguns dias, um comentário sobre esse livro de Sproul, onde listei os tipos de antinomianismo (anti+ nomos = ideologia contra a lei, repúdio à norma) que ele aborda.

Se eu pudesse, ainda acrescentaria um quarto tipo de antinomianismo à lista.

Tenho dúvidas quanto ao nome que daria a ele; mas sei que funciona mais ou menos da seguinte forma: há um repúdio geral à ideia de obedecer à lei. Se a lei diz: "É permitido entrar de sapatos", a tendência das pessoas é querer entrar de chinelos. Se a lei diz: "Você deve escrever com caneta preta", as pessoas querem usar caneta vermelha (alguém aí lembrou de Romanos 7? hehe). Recentemente, na sala de aula, vi colegas meus questionando o professor porque ele queria que marcassem "C" ou "E" na questão, não permitindo que usassem as letras "V" ou "F", sob pena de não receberem a pontuação. Enquanto ele argumentava, dizendo que os alunos deveriam simplesmente obedecer às regras colocadas no enunciado da prova, meus colegas riam dele. "Não se pode interpretar as leis literalmente", diziam.

Existe um repúdio geral à ideia de se conformar à lei. Se alguém tenta dissuadir outro de fazer algo, argumentando que a lei o proíbe, é simplesmente acusado de legalista. É como se obedecer às leis fosse legalismo. É como se fosse um pecado, uma falha de caráter interpretar as leis de forma literal. "Legalista" se tornou um rótulo para pessoas que ainda querem, de alguma maneira, obedecer ao que a lei diz. As pessoas se sentem desconfortáveis se você simplesmente disser: "O que a lei está dizendo, é isto que ela quer dizer; só nos cabe cumpri-la". Muitos, no meio jurídico, até ficam revoltados se você disser: "A lei é clara", porque para eles é um insulto abominável dizer que existe uma lei de sentido claro, que não podem moldar às suas "interpretações". Eles querem torcer a lei para que signifique o que eles querem. Esse é o extremo oposto do legalismo: sob o pretexto de não ficarem presas à letra da lei, as pessoas flagrantemente mudam o seu sentido da forma como querem. E dão a isso os nomes mais exóticos: "interpretação extensiva", "nova hermenêutica tal e tal". Tenho um certo contato com esse tipo de antinomianismo porque ele infectou o ambiente jurídico até ao coração. O espírito da nossa época, na comunidade jurídica, é esse: anti nomos. Reação contra a norma. Oposição à lei. Inclusive, não tenho dúvida de que muitos colegas meus, lendo este texto, afirmariam de cabeça erguida: "Sim! Nosso espírito hoje é, de fato, nos insurgirmos contra a lei! Não nos submetemos à sua letra e e questionamos o que ela diz. Nosso espírito é nos libertamos dessas amarras de termos que obedecer a leis fixas", e teriam orgulho disso. O espírito da nossa época é antinomiano. Somos ensinados a "pensar" assim na faculdade de Direito.

Vejo, assim, que um paralelo muito bom poderia ser feito entre a comunidade jurídica de hoje em dia com a comunidade judaica dos tempos de Jesus e com o catolicismo da Idade Média (e de hoje): nenhuma das três vê problema algum em abandonar o real sentido da lei, contanto que o façam em conformidade com a tradição ou consenso da sua época. Se todos questionam a lei, está tudo bem, contanto que inventem "princípios jurídicos" que os fundamentem. Não importa se a Constituição diz: "homem e mulher"; nós podemos simplesmente entendê-la como dizendo "homem e homem", se tão somente nos juntarmos todos para afirmar isso. E, pasmem, isso é louvado entre os estudantes de Direito! É louvável mudar o sentido da lei para seu exato oposto, enquanto que é vergonhoso dizer: "Tenho que me conformar ao que a lei diz." O sentido desse tipo de antinomianismo é este: se os doutores e mestres afirmam algo, então é válido, mesmo que contradiga o que a lei diz. A opinião, tradição ou cultura está acima da lei. As três comunidades eram exatamente iguais nesse ponto.

Que nome poderia dar para esse tipo de antinomianismo?

segunda-feira, 17 de outubro de 2016

[Resenha] Como posso desenvolver uma consciência cristã? - R.C. Sproul



[Escrita em Nov 2015]

Recentemente, terminei de ler este livro, um dos melhores que já li deste autor. Ele faz parte de uma série de livretos sobre assuntos cruciais da fé cristã.

Como esperado, o Sproul aborda muito bem a questão de como o cristão deveria enxergar a sociedade à sua volta, especialmente no que tange à ética.

Os assuntos que mais achei proveitosos foram: o tema do relativismo, como como lidar com questões morais na cultura secular (como um cristão deveria enxergar a legislação que toca em certos pontos morais), a visão cristã do sentimento de culpa, a prevalência da lei de Deus sobre toda vontade e cultura humanas. E ainda dá uma pincelada na doutrina reformada do aliancismo.

Em especial, achei fantásticos os capítulos que falavam sobre os dois extremos opostos que distorcem a lei de Deus: o legalismo e antinomianismo. Eis um resumo desses dois:

As formas que o legalismo assume:

1 - Guardar a lei como fim em si mesmo. Separar a obediência à lei da obediência a Deus.
Não há amor, alegria, adoração, apenas apego a regras por si mesmas.

2 - Separar a letra da lei do espírito da lei. A preocupação é apenas em cumprir rigidamente a letra, mesmo que, no fundo, esteja se ferindo a finalidade para a qual a lei foi feita.

3 - Acrescentar nossas próprias regras à lei de Deus e considerá-las divinas. Inserir regras sobre assuntos dos quais a Bíblia não fala nada. É o tipo mais comum e mais prejudicial. Está muito ligado ao próximo tipo.

4 - Valorizar em primeiro lugar as coisas menores da lei. Preocupar-se mais com a quebra de um padrão sem importância, muitas vezes baseado na tradição, do que com as coisas mais centrais na ética cristã: justiça, misericórdia e fidelidade.

5 - Escapismo. Procura-se minuciosamente brechas na lei, para poder quebrá-la de uma maneira formalmente correta.

Em seguida, ele explica alguns tipos de antinomianismo (anti + nomos = contrário à norma, ideologia contra a lei. O exato oposto do legalismo).

1 - Libertinismo. "Deus é gracioso, Ele sempre perdoa, então podemos pecar".

2 - Espiritualismo gnóstico. A pessoa utiliza uma suposta revelação pessoal para validar suas próprias vontades. "Deus me disse que era pra eu fazer isso e aquilo"; "Deus me revelou no meu coração que eu deveria tomar tal atitude", muitas vezes de forma contrária à Palavra de Deus. Como Sproul diz: "Usamos uma linguagem espiritual para livrar-nos a nós mesmos de prestar contas à comunidade cristã [...] Quem quer argumentar contra a chamada de Deus?"

3 - Situacionismo. "Deus entende minha situação, Ele me concede uma exceção pra quebrar a lei nesse ponto"; "Minha consciência está limpa, porque estou agindo pelo amor".

Por fim, no último capítulo, ele ainda aborda a questão dos graus de pecado, explicando à pergunta: "Existem graus de pecado - pecadores maiores e menores?". Contrariando o senso comum no meio evangélico, ele defende que sim, e mostra que tanto biblicamente como historicamente essa foi uma verdade reconhecida pela Igreja, e essencial para nossa convivência em comunidade.

Um dos melhores que já li dessa série.

segunda-feira, 5 de setembro de 2016

O vírus liberal e seus diferentes estágios de infecção

Resenha entregue por ocasião do módulo "Teologias Contemporâneas", da ECH.


O liberalismo pode ser considerado, no século XXI, um dos nossos maiores inimigos – se não o maior. Temos lidado rotineiramente com a investidas do Inimigo contra a nossa fé, através de muitos falsos mestres que surgem para atacar a fé confiada aos santos, como já prediziam as Escrituras. Uma das utilidades do estudo da teologia contemporânea é saber de que forma nossa fé vem sendo atacada, e juntamente com isso aprender as respostas que as Escrituras dão a esses ataques. Entrando, assim, em contato prévio com esses agentes estranhos à sã doutrina, podemos ser vacinados e, assim, cuidar melhor das ovelhas que o Senhor nos tem confiado, face a tantas investidas do Maligno.

O liberalismo teológico tem algumas características que o identificam, tais como:

A ênfase na subjetividade, a negação da historicidade e a exaltação do relacionamento ético acima de qualquer outra coisa. Uma das grandes tendências do vírus liberal é incutir nas pessoas a ideia de que a Bíblia não pode ser confiada como um relato inerrante (seja de princípios morais, seja de fatos históricos). Dessa forma, estimula às pessoas que reduzam a Palavra de Deus a um mero livro que contém lampejos de luz, fragmentos de ensinos que vieram de Deus, mas que estão envoltos em histórias e palavras que não são inspirados por Deus. Sendo assim, a crença nos milagres é relegada a um segundo plano (ou, até mesmo, considerada como imaturidade e religiosidade humana), enquanto a essência da religião verdadeira é definida em termos de uma ética elevada. O cristianismo deixa de ser a fé num Salvador que operou milagres e que consumou um processo sobrenatural de expiação sacrificial, e passa a ser apenas um modo de vida. Uma moral. Cristo é apenas um exemplo a ser seguido. Devemos, como discípulos de Cristo, ver isso como um ataque frontal ao Evangelho que nos salvou, visto que ele é anulado por essas doutrinas – ao invés de um Salvador que morreu em expiação pelos nossos pecados, o cristianismo é reduzido a boas obras.

O ataque, porém, não fica só aí: a fonte de autoridade para a vida dos fiéis deixa de ser a Palavra de Deus e a tradição fiel a ela (uma fonte externa ao indivíduo) e passa a ser o próprio leitor, individualmente (autoridade interna). Assim, o liberalismo teológico, em verdade, mostra-se apenas como uma forma de relativismo disfarçada com argumentos teológicos. O indivíduo torna-se o intérprete último das Escrituras, desconsiderando tanto a tradição ortodoxa (a interpretação fiel que milhares de cristãos sustentaram ao longo da história) como também a própria Escritura, como intérprete de si mesma. Enxergando a Bíblia como um livro não inspirado, o indivíduo assume para si a autoridade para determinar o que, dentro dela, possui status de palavra de Deus ou não. A ética, assim, se torna autodeterminada. De repente, o indivíduo que é avarento lê a passagem que diz: “Ninguém pode servir a Deus e a Mamon”, e decide que aquilo não é Palavra de Deus para ele. Ou um jovem lê versículos em Provérbios alertando contra a imoralidade sexual e decide que isso é um tanto relativo. Portanto, um dos efeitos do liberalismo teológico é desconstruir a fé na objetividade da Palavra de Deus. Como consequência, os indivíduos por ele infectados acabam por se afastar do próprio Deus, pois a sua Palavra é uma expressão do seu caráter e vontade, como disse o nosso Senhor: “Santifica-os na tua verdade; a tua palavra é a verdade.” (João 17.17). Infelizmente, esse vírus não ataca somente o joio que está infiltrado no mundo, com aparência de trigo. Ele torna doentes as ovelhas de Cristo, as quais podem cair e se desviarem por caminhos muito tortuosos até serem disciplinadas pelo Senhor de volta para o caminho certo. Por isso, é tão importante que saibamos combater essa estratégia do inimigo dentro do meio evangélico.

Uma das estratégias que são utilizadas para inocular esse vírus no nosso meio é a utilização de termos próprios da linguagem cristã. Palavras como “salvação” e “perdão” e expressões como “nascer de novo” são utilizadas pelos difusores dessa doutrina, dando a impressão, à primeira vista, que eles creem nos pilares fundamentais da fé cristã. Contudo, trata-se de uma estratégia para infundir novas ideias de uma forma velada. O fato é que eles procuram conservar os termos utilizados nas Escrituras, sem negá-los abertamente, porém reinterpretando-os. Essa chamada “reinterpretação” de termos cristãos é, na verdade, a mudança completa dos conceitos que essas palavras representam. Assim, “salvação” talvez signifique a reestruturação de uma vida bagunçada. “Nascer de novo” talvez signifique uma reforma moral. “Casamento” talvez signifique um compromisso informal de fidelidade. “Jugo desigual” é um tanto relativo (já que o próprio conceito de “cristão” também se torna relativo, visto ser reduzido a alguém que tem uma boa moralidade). Deixa-se de lado os conceitos sobrenaturais que esses termos representam. Acontece que, usando esse artifício linguístico, eles conquistam a simpatia de cristãos de vários segmentos, para desviá-los do caminho da verdade; cumprindo, assim, a palavra do Senhor, que nos alertou: “Cuidado com os falsos profetas. Eles vêm a vocês vestidos de peles de ovelhas, mas por dentro são lobos devoradores.” (Mateus 7:15).

É necessário ter em mente, porém, que o liberalismo possui vários níveis. Existe o liberalismo clássico, irmão do Iluminismo, que nega frontalmente e abertamente as verdades essenciais da Palavra de Deus. É raro, porém, encontrar esse tipo “original”, por assim dizer, de liberalismo. Outras doutrinas vão surgindo ao longo das décadas, e tentativas de amenizar o liberalismo tomam força. A neo-ortodoxia é um exemplo disso: chamamos ela simplesmente de “liberalismo” (como chamamos qualquer doutrina que relativize as Escrituras em algum nível), mas ela, tecnicamente, foi uma reação que procurou fazer oposição a ele. Pode-se dizer que ela procurou estabelecer um meio termo entre a ortodoxia cristã e o liberalismo teológico. Contudo, como diz o Dr. Augustus Nicodemus no seu artigo “Não se fazem mais liberais como antes”, os “liberais” de nossa época são assim: ficam numa posição intermediária e não admitem abertamente suas posições teológicas controversas. É exatamente por isso que são tão perigosos: porque são sutis – têm pele de ovelha. É importante, por causa de tudo isso, que mantenhamos a nossa fidelidade ao nosso Senhor, que nos chamou, e jamais estejamos dispostos a fazer qualquer síntese com o pensamento do mundo. Jamais qualquer concessão em termos da verdade. Tornou-se moda em nossa época flertarmos com a “tolerância” (uma palavra distorcida em nossos dias, que representa um dos principais princípios que o Inimigo tem levantado neste século). Antes e acima de qualquer tolerância no campo da crença, devemos ser completamente fiéis à Palavra de Deus. Ainda que o mundo inteiro relativize a Palavra de Deus – nem que seja só um pouquinho – devemos permanecer firmes, sabendo que fazemos parte, não do mundo, mas de um pequenino rebanho. Nossa fé deve ser: “A tua palavra é a verdade desde o princípio, e cada um dos teus juízos dura para sempre.” (Salmos 119:160).


quinta-feira, 28 de julho de 2016

Caminho Fiel [Pt. 13] Os pobres


Conselheiro – E vocês, quem são? – Ele se virara, agora, para o primeiro grupo de pessoas com quem havia falado, de aparência pobre.
Choroso – Somos os pobres da terra.
Conselheiro – De onde vêm?
Pobre-de-Espírito – A maior parte de nós não vive em cidade; vivemos nos caminhos e mendigamos; apesar disso, temos pessoas vindas de todas as cidades, países, vilarejos e terras representados aqui por todos os grupos de peregrinos.
Choroso – No nosso caminho até aqui, passamos por um trecho horrível. Tudo lá tem o ar de abandono. Gostaríamos de ter pego a nova estrada aberta pelos servos do Rei, mas fomos impedidos pelos foliões de Vaidade, que a tomaram e não nos deixaram passar. Tivemos, assim, de vir por aquele caminho estranho.
É um lugar horroroso. Apesar de muitos perigos que encontramos lá, é o próprio silêncio do local que o torna mais insuportável. As trevas me cercaram, esmagando a minha alma com uma tristeza intensa. Elas são tão espessas que me impediram de ver os outros peregrinos. É como se a solidão fosse lá levada a um nível quase absoluto, como se não houvesse mais ninguém conosco. Enquanto andava por lá, me senti completamente abandonado.
Conselheiro – Vocês vieram pelo Vale da Sombra da Morte. Todos vocês, que aqui estão, ainda passarão por ele na sua jornada até a Cidade Celestial. Lembrem-se da principal consolação que os levará em vitória por esse vale: a presença do Rei; como está escrito: "não temerei mal algum, pois Tu estás comigo"; e também assim o maior de todos os peregrinos foi consolado: "todos me deixarão só, porém não estou só, pois o Pai está comigo".
Por favor, contem-nos mais de suas histórias.
Desprezado - Eu vim de Vaidade. Eu era um dos que eram desprezados pelos mais ricos de nossa cidade. Muitos viravam o rosto de mim, e tapavam os ouvidos quando eu clamava.
Conselheiro - Pelo quê clamava?
Desprezado - Por comida. Mas não apenas por isso; também por outras coisas, como alegria, amor e cuidado.
Acontece que sou órfão (como a maioria dos meus companheiros), e desde criança tenho vivido sozinho, sobrevivendo como podia. Por viver em Vaidade, aprendi algumas habilidades artísticas para ganhar sustento pelas ruas. Cresci sustentando-me a mim mesmo, por ser órfão, como disse.
Conselheiro - E o que quer dizer quando diz que clamava por amor e alegria?
Desprezado - Por ser órfão, nunca soube o que era ter uma família. Por muitas vezes, andando sozinho pelas praças da cidade, a solidão se abatia sobre mim como uma escuridão gelada, que abafava todo o calor e risos à minha volta. Não foram poucas as vezes que, ainda menino, eu via outras crianças de mãos dadas com seus pais; o que me cortava por dentro, pois nunca tive isso. Daria tudo, naquele tempo, para ter tudo o que elas tinham.
Pobre-de-Espírito - Também eu soube o que era passar fome . Muitas vezes não tinha o que comer, cheguei a dormir pelas ruas, soube o que era comer restos azedos. Sei, porém, que hoje tenho um Pastor que me conduz a seus pastos, e nada me deixa faltar. Sei que, em todos esses momentos que passei, Deus foi fiel, e continua sendo bom. Não entendo muitas coisas, mas dou graças a Ele por tudo. De alguma forma, Ele sempre me deu quando clamei a Ele com fé, e de tudo o que eu dava, Ele me restituía ainda mais.
Houve um tempo em que eu odiei os ricos, atribuindo-lhes a causa dos males no mundo; mas, no fundo, eu os invejava, questionando a Deus por não ter dado a mim os seus bens; na verdade, era neles que estavam meus olhos e meu coração, daí minha inveja. Hoje percebo que sou tão ganancioso quanto qualquer um, e talvez fosse pior do que eles, caso tivesse recebido seus bens, junto com suas tentações. O que me importa é que morri para esse mundo, e toda a sua cobiça, e recebi já nessa vida cem vezes mais do que abandonei.
Conselheiro - Em Cristo, não há pobre nem rico, mas somos todos servos uns dos outros, juntamente com nossos bens. Nisto reconhecemos que somos a família de Deus - não somos amigos por natureza, mas é o Espírito e a Verdade que nos unem - disse, olhando para os ricos peregrinos de Vaidade.

sexta-feira, 3 de junho de 2016

Caminho Fiel [Pt. 12] Os peregrinos da Cidade da Vaidade

"Pois não; ouçamos agora. Quem são vocês e de onde vêm?"

Conselheiro acabara de dar suas instruções gerais a todos, e se virava agora ao grupo excêntrico que havia sentado há poucos minutos.

Grupo de peregrinos desconhecidos – nós não somos dignos de estarmos aqui; somos da Cidade da Vaidade, e perseguimos e desprezamos os peregrinos que por lá passaram há algum tempo. Além disso, nos regalamos nos prazeres da vaidade e somos a causa não apenas da pobreza desses peregrinos que conosco sentaram, mas também do sofrimento de muitos dos que aqui se encontram.

Havia certo clima de tensão no ar.

Conselheiro – E de que forma vocês são culpados?

Generoso – Nós somos culpados de roubar e extorquir os pobres e viúvas de muitas terras, que são tributárias da nossa cidade de origem.

Humilde – Também desprezamos o clamor daqueles que eram pequenos à nossa vista.

Simplicidade – Nós estimulamos o luxo e a luxúria entre nossos concidadãos. Fazíamos com que nos fabricassem vestidos de tecidos finos, de linho, púrpura, escarlate e todas as cores, assim como adornos feitos de pérolas, pedras preciosas de todos os tipos, madeira, bronze, ouro e outros metais. Alimentávamo-nos das iguarias mais requintadas que havia. Também desfrutávamos de alta posição entre os moradores de nossa cidade. Inventávamos com frequência os utensílios que deveriam ser usados por todos. Vivíamos de forma regalada e zombávamos daqueles que não podiam ou não queriam aderir à nossa tendência. Deixávamo-los, assim, no desprezo de todos, entregues à solidão, quando não conseguíamos fazê-los escravos da moda e riqueza que nós mesmos criávamos e cultivávamos. Dividimos a nossa cidade entre dois extremos: os pequenos centros, cintilantes de alegria, gala e festividade, e os redutos escuros dos que não eram cidadãos. Assim, oprimimos bastante aqueles que não se alinhavam com nosso amor ao mundo; se não pela opressão direta, pelo desprezo e indiferença.

Sede-de-justiça – Também nos divertíamos em nossos próprios pecados, buscando a maior quantidade possível de prazeres terrenos. Não apenas insultamos, assim, o nosso Criador, como também causávamos tristeza, dor e sofrimento aos peregrinos, na mesma medida em que alcançávamos prazer.

Conselheiro – Como assim?

Sede-de-justiça – Acontece que, a cada vez que pecávamos, os justos que o viam e ouviam (e, muitas vezes, fazíamos questão que o fizessem) se afligiam em sua alma por todas as impiedades que viam e ouviam. Além disso, muitos deles eram levados a tropeçar por causa de nosso mau exemplo, pecando contra seu Senhor e sofrendo sua dura disciplina. Ademais, privamo-los de muitos dos prazeres inocentes que poderiam ter tido, tanto por roubarmos-lhes os meios para isso, como por deixar confusa a consciência deles, a ponto de não conseguirem distinguir entre os princípios de seu Rei e os princípios que nós criávamos. Roubamos também as próprias almas que poderiam ter dado alívio umas às outras, tomando-as de sua solidariedade natural para o nosso reino de devassidão e individualismo; vendíamos homens e almas. Finalmente, acontecia também de nossos pecados gerarem consequências que recaíam não apenas sobre nós, mas sobre eles também. Nossas maldades marcaram permanentemente o coração, o corpo, a mente e a alma de muitos peregrinos do Rei. 

Conselheiro – O que você quer dizer com isso?

Sede-de-justiça – Nós, por exemplo, éramos daqueles que financiavam a construção de pontes falsas, como a que foi vista ontem, pois nossa cidade é filha da outra Grande Cidade, terra próxima daqui, onde existem os jardins de ruínas, e com ela temos acordo de levar peregrinos a seus jardins lascivos. Fora isso, muitas aflições que causamos têm efeito indelével nas almas dos justos. Se quer saber mais como isso se dá, eles mesmos podem explica-lo melhor do que nós, porque só eles conhecem essa dor. É mais fácil sentir uma dor que se recebe, e não uma que se provoca; e o coração conhece a própria amargura. Creio, assim, que nunca saberemos realmente o efeito que nossos pecados têm na alma de outras pessoas.
O fato é que, dessa e de muitas outras formas, promulgávamos e promovíamos o pecado – nas ruas e praças, palanques e livros, palácios, esquinas, calçadas e casas. Tínhamos orgulho de disseminar nosso estilo de vida, que considerávamos a verdadeira liberdade – quando na verdade éramos escravos do pecado e do príncipe deste mundo, fazendo a sua vontade. De fato, pode-se dizer acerca dos cidadãos de nossa cidade que não apenas praticamos a iniquidade, como também aprovamos e aplaudimos aqueles que a praticam.
Em todas essas coisas, nossos prazeres eram diretamente proporcionais ao sofrimento gerado nos justos. Não é à toa, portanto, que diz o hino de nossa província: "Babilônia, a Grande, embriagada com o sangue dos santos". Ouso dizer, até mesmo, que parte do sofrimento por nós gerado recaiu sobre alguns dos peregrinos que aqui se encontram, e talvez os acompanhe até o final de sua jornada.

Todos os olhares estavam fixos, nesse momento, em Sede-de-Justiça. Em meio ao silêncio, quebrado apenas pela sua voz, os ouvintes esboçavam diferentes reações. Por mais que a maioria demonstrasse choque e repulsa ao ouvirem sobre quem eram os novos companheiros, Cristã podia ouvir algumas crianças e jovens que olhavam admirados, cochichando uns aos outros: "são eles realmente os famosos cidadãos de Vaidade, de quem tanto ouvimos falar?"

Conselheiro – Como vocês se sentem em relação a isso, agora?

Humilde – Nós trememos, senhor, e abominamos a nós mesmos.

Sede-de-justiça – Nós nos arrependemos no pó e na cinza.

Generoso – Nós nos arrependemos diante do Senhor e dos companheiros peregrinos, e reconhecemos a nossa culpa. Nosso anseio é, em tudo o que seja possível e além, reparar todo o sofrimento que causamos e restituirmos em múltiplo tudo aquilo que roubamos.

Humilde – Apesar de reconhecermos que cometemos muitos pecados para os quais não há reparação possível.

Mulher Idosa – Fiquem tranquilos. Estamos todos num novo caminho, onde semeamos a justiça. Aqueles que semeiam com lágrimas, para o Espírito, colherão a vida, na cidade onde habita a justiça.

Sede-de-Justiça – Se chegaremos ou não nessa cidade, não sei. Não sei o que temo mais; voltar à minha cidade de origem, ou comparecer diante da porta do céu.

Uma criança, que ali estava, perguntou a eles: “Por que vocês ainda estão usando essas roupas engraçadas?” – pelos olhares dos adultos, Cristão e Cristã podiam perceber que alguns também estavam com a mesma pergunta no ar. Humilde respondeu: “Porque não tínhamos outras vestimentas para vestir, visto que saímos muito apressadamente da nossa cidade.”

Cristã – E por que saíram apressadamente?

Humilde – Nós tínhamos medo de sermos destruídos juntos com a cidade.

Cristã – E por que pensavam isso?

Humilde – Ocorreu que eu encontrei um pergaminho deixado para trás há algum tempo por um homem que havia passado por nossa cidade, de nome Evangelista. Tomando-o e lendo-o, descobri que continha apenas maldições a respeito de nossa cidade, o que me deixou extremamente apavorado.”

Jovem bem vestido – O que ele dizia?

Humilde – Ele dizia muitas coisas, mas todas parecidas; de forma que tudo poderia ser resumido no seguinte: “Dentro em pouco, a Cidade da Vaidade será destruída.” Isso me deixou em tamanha angústia que não consegui dormir ou comer aquela noite. No dia seguinte, já a caminho do portão da cidade, encontrei esses meus três amigos. Respondendo-lhes sobre meu estado (visto que percebiam claramente que eu estava perturbado), contei-lhes o motivo da minha angústia, mostrando também o pergaminho que levava comigo. Lendo-o, eles ficaram ainda mais perturbados do que eu, a ponto de suas pernas e lombos tremerem em pleno calor do dia. Era como se cambaleássemos como bêbados. A única esperança (se havia alguma) seria sair correndo. Sim, de fato corremos, como nunca antes, e não trouxemos conosco bagagem alguma, nem sequer olhamos para trás, mas nos afastamos da nossa cidade para nunca mais voltar.

A atenção de todos os peregrinos era total.

Conselheiro – Não lhes foi dado nenhum conhecimento adicional?

Humilde – Sim, depois de não muito tempo. Assim que saímos dos arredores de nossa cidade, entramos em campo aberto e não sabíamos para onde ir. Graças ao bom Deus, Evangelista estava lá para nos instruir. Graças ao Pai por pessoas assim, que se dispõem a andar por terras perigosas à procura daqueles que estão perdidos e precisam de orientação. Sem ele, não teríamos descoberto o caminho. Ele disse tudo sobre a Porta Estreita, o Calvário, o Caminho, o Arrependimento, o Mundo, o Espírito, a Palavra de Deus, a Cidade Celestial, e muitas outras coisas.

Conselheiro – Vocês são mais do que bem-vindos aqui, meus amigos. Não se constranjam por suas vestes; elas são a prova de seu arrependimento e fé sincera. Ao contrário de nos gerar hostilidade, sua disposição em ter vindo até aqui, sem se importar com mais nada, apenas nos atesta que vocês realmente creram na palavra que leram e ouviram, e que não têm medo de serem expostos nos seus pecados. O peso do arrependimento de vocês é muito maior do que o de seus pecados, no que tange à sua aceitação nesta casa.

terça-feira, 31 de maio de 2016

Romanos 1: a inteligência às avessas. Uma anedota.

Texto que escrevi no final de 2013.

Esses dias, eu estava numa aula da faculdade, ouvindo um debate sobre determinado assunto polêmico e a opinião dos meus colegas, quando a discussão me lembrou bastante de como a Bíblia descreve nossa tendência natural a resistir à verdade. Lembrei de Romanos 1.18-32, que explica perfeitamente como o ser humano desvia o olhar diante de uma verdade evidente e agradável, suprimindo-a em prejuízo próprio, o que ocorre em especial nos dias de hoje.
Fiz uma pequena anedota-metáfora desse capítulo, como uma descrição do que vejo no meio acadêmico. Imaginei o seguinte:

É como se existisse um grupo de pessoas que têm acesso a toda sorte de frutas e comidas saudáveis, assim como biscoitos e outras comidas prejudiciais à saúde. Sem muito cuidado com a alimentação, muitos deles comem sempre “junk food” e quase nunca alimentos naturais.

Sendo alertados por um médico que estão com deficiência de determinadas vitaminas, e que em breve desenvolverão determinadas doenças, já começam a apresentar certos sintomas – cansaço, anemia, alguns desmaios. O médico é taxativo: eles precisam comer bem ou não vão melhorar.

Imediatamente eles se iram contra o médico por estragar o bem-estar deles com seu aviso e concordam entre si que ele deve ter um interesse escuso e desonesto em dar seu diagnóstico.

Depois da morte de um deles (que só comia biscoitos recheados), decidem também que a melhor coisa, a ser mais exaltada e considerada mais correta e urgente a fazer é cuidar do próprio bem-estar à maneira própria: eliminar completamente as frutas e legumes de seu cardápio e aumentar seu consumo de biscoitos e refrigerantes. Como “essas comidas são saborosas” – e “a comida deve servir para alegrar os que comem” –, eles decidem não só comê-las à vontade, mas também aprovar e parabenizar os que assim fazem.
Essa é a inclinação que vejo profundamente arraigada no meio acadêmico onde estou, assim como entre o povo e, infelizmente, encrustada na maior parte da igreja evangélica em geral.
 “Mas aquele que de mim se afasta, a si mesmo se agride; todos os que me odeiam amam a morte.” (Provérbios 8:36). 

quinta-feira, 26 de maio de 2016

Uma forma sutil como a "Salvação pela Lei" se transveste de "Salvação pela Graça".

“Pois quem obedece a toda a Lei, mas tropeça em apenas um ponto, torna-se culpado de quebrá-la inteiramente.” (Tiago 2:10).

Esse versículo tem me perseguido em conversas sobre a Bíblia. É um dos que mais gosto e um dos que mais utilizo quando estou evangelizando. Porém, tenho visto que ele pode ser mal interpretado.

Algumas pessoas acham que ele só condena os ímpios (pois não obedecem à Lei de Deus), e não os justos (visto que estes obedecem a Deus). Os justos, segundo alguns creem, obedecem a toda a lei, sem tropeçar em nenhum ponto. Dizem eles: “A salvação é somente pela graça... mas o fruto da salvação é que você vai obedecer a Lei. TODA a Lei.”.

Isso é um erro que destrói o Evangelho da graça de Deus. Creio até mesmo que seja um ardil de Satanás para perverter o verdadeiro evangelho.

Se confiarmos nossa salvação a nosso desempenho espiritual – a nosso cumprimento da Lei –, caímos, na verdade, em condenação, pois baseamos nossa posição de “perdoados” diante de Deus em nosso próprio esforço. Há alguns que dizem: "A salvação é pela graça; mas você só está ligado à graça enquanto obedecer fielmente à Lei. No momento em que peca, deixa de estar sob a graça". Alegando crer na salvação pela graça, estão na verdade pregando a salvação pelas obras. Caem na maldição pronunciada por Moisés e repetida pelo apóstolo Paulo: “Já os que são pela prática da lei estão debaixo de maldição, pois está escrito: ‘Maldito todo aquele que não persiste em praticar todas as coisas escritas no livro da Lei’.” (Gálatas 3:10; Dt. 27.26). Entre estes, estão os Adventistas, que hoje em dia constituem a seita mais sutil no Brasil, muitas vezes se misturando com os verdadeiros evangélicos.

Nossa posição de JUSTIFICADOS diante de Deus se baseia EXCLUSIVAMENTE no mérito de Cristo e na obediência DELE em nosso favor, a qual foi gratuita, IRREVOGÁVEL e ETERNAMENTE IMPUTADA a nós, nos tornando PARA SEMPRE justos diante de Deus. NADA do que façamos após esse veredicto pode muda-lo, pois Deus preservará para sempre suas ovelhas (João 10.28-29). Nós somos salvos pela graça, santificados pela graça e sustentados pela graça. Vivemos mergulhados num oceano de perdão que excede nosso desempenho.

Mesmo justificados, continuamos descumprindo toda a Lei, todos os dias; na verdade, nunca amamos a Deus com TODA a nossa força, nem o nosso próximo perfeitamente, como a nós mesmos; assim, violamos a Lei de Deus CONSTANTEMENTE, a cada milissegundo, em todos os seus mandamentos. 

Se a nossa salvação dependesse de pedirmos perdão conscientemente por todos os nossos pecados, precisaríamos viver 24h por dia clamando a Deus por perdão – e ainda assim sem nenhuma segurança de salvação. Mas Cristo já ora por nós constantemente, nos dando segurança eterna (Rm. 8.34; 1 João 2.1). Não tente preservar sua salvação por meio de “orações de arrependimento”, como se perdesse a salvação por causa de um pecado, e depois precisasse readquiri-la (salvação pelas obras); pois, assim, estará tentando merecer seu perdão numa espécie de sacrifício de penitência. Já fiz isso muitas vezes; como se a tristeza do arrependimento fosse o mérito que apresentamos a Deus, para dizer que temos alguma justiça para trazer diante dEle. Não! Peça perdão a Deus com sinceridade, chore pelo seu pecado, e agradeça a Deus pela sua salvação imerecida, gratuita e perpétua (Hebreus 10.14).

Não me entenda mal; o arrependimento é necessário, sem o qual não há perdão. E o verdadeiro cristão realmente avança poderosamente na santificação e na vitória sobre o pecado. Se você não se sente mal com seu pecado e não luta contra ele, ou se nunca faz nenhum real avanço na santidade, não há nenhum indício de que realmente tenha sido perdoado por Deus. Todos os que são feitos filhos também recebem um novo coração, e odiarão o pecado e lutarão contra ele por toda a vida, pois são novas criaturas – justamente porque a semente de Deus permanecerá para sempre neles (1 João 3.9).



Por isso, deixo este alerta: no momento em que apoiarmos nossa posição diante de Deus na nossa obediência, a Lei fiel de Deus se voltará contra nós, e, diante do menor pensamento impuro em nossa mente, nos humilhará e nos condenará como transgressores e inimigos sob o juízo de Deus.

segunda-feira, 23 de maio de 2016

Caminho Fiel [Pt. 11] Reunião com os peregrinos no saguão

       Após alguns momentos, durante os quais os peregrinos descansaram e conversaram com seus novos companheiros, Conselheiro mandou reunirem-se todos os peregrinos que lá se achavam, os quais começaram a vir das câmaras interiores. Eles notaram que o grupo de pessoas que ali estava era bem diferente daqueles com os quais estavam acostumados em suas terras de origem; pessoas com diferentes tipos de vestimentas, modos de se portar e aparência física, porém todos se entendiam na mesma língua. O grupo era claramente heterogêneo, proveniente de muitas terras diferentes. Quando todos estavam reunidos no saguão principal, Conselheiro tomou a palavra.


       Conselheiro – Sejam bem-vindos, amigos. Eu os trouxe todos aqui para adorarem ao Senhor e para serem tratados de suas feridas, pecados e ignorância, antes que prossigam no caminho. Tomem lugar, e assentem-se todos.

       Cristão e Cristã notaram que cada grupo sentou-se com seus semelhantes; alguns, nos sofás que lá havia; outros em almofadas no chão, semelhantes às que encontraram dentro da gruta. Havia lugar suficiente para todos se acomodarem. Notaram, também, que dois daqueles grupos permaneciam bastante quietos e reservados, mantendo-se de pé ao derredor de todos: o primeiro era formado de seis pessoas, em roupas simples e surradas, com a pele fustigada pelo Sol; tinham aquela aparência inconfundível de pobreza. O segundo grupo era de quatro pessoas, dois homens e duas mulheres, com uma aparência bastante estranha: suas vestes eram mais coloridas que o arco-íris, seus cabelos eram extravagantes, havia brincos, pingentes e até guizos que pendiam de seus corpos, cabelos e roupas. Cristão e Cristã ficaram imaginando que tipo de pessoas eram aquelas. Notaram que alguns dos outros viajantes olhavam desconfiados para um ou outro grupo, às vezes cochichando algo com alguém de sua própria caravana. Ambos os grupos, em pé, pareciam estar pouco à vontade em estar ali.
       Conselheiro, então, os notou.
       Conselheiro – O que houve, amigos? Por que não se sentam mais próximo?
       Homem pobre – Estamos bem aqui mesmo, obrigado.
       Conselheiro – Não; certamente devem se sentar aqui, ao meu lado. – ao que o primeiro grupo sentou-se, ainda inseguro, no chão próximo a Conselheiro.
       Conselheiro – Temos de ter muito cuidado, para que ajamos de forma digna do evangelho. A lei do nosso Rei diz: amarás o teu próximo como a ti mesmo. Mas, se tratarmos as pessoas com parcialidade, fazendo acepção, seremos condenados como transgressores. E quanto a vocês? – disse, dirigindo-se ao outro grupo.
       Grupo de peregrinos desconhecidos – Senhor, nós viemos de uma cidade indigna; não convém a nós nos sentarmos junto com vocês, além do que nos sentimos constrangidos tão somente de estar neste lugar. Por isso, estamos mais do que satisfeitos em ouvi-lo de longe, honrado Conselheiro.
       Conselheiro – de forma nenhuma, amigos. Sentem-se aqui e contem-nos sua história; vocês serão os primeiros, assim que eu tiver passado minhas instruções principais.
       À essa palavra, eles ruborizaram, e sentaram-se também em alguns lugares vagos.
       Conselheiro – Tenho muitas coisas que ensinar a vocês, algumas das quais vocês não podem ainda suportar. Podemos agora começar, visto que nosso número está completo; aqueles que faltavam chegaram até nós.
       Cristão – Ele está falando de nós? – sussurrou para Cristã.
       Cristã – Nós fomos os últimos a chegar, então acho que sim…
       Uma jovem ao lado deles escutou-os sussurrando. Era a mesma que tinha falado com eles no início, junto com dois outros peregrinos. Cristã a tinha notado como uma das mais jovens do ambiente. Ela usava um vestido simples de lã e uma longa trança única atrás da cabeça. Ela acrescentou, no mesmo tom: "Sim, são vocês mesmo. Nós esperamos vocês desde a noite passada."
       Cristã – Então, sabiam que viríamos?
       Peregrina desconhecida – sim, nós sabíamos.
       Cristão – Como? Quem lhes contou sobre nós?
       Peregrina desconhecida – Isso não vem ao caso agora. De qualquer forma, nós esperávamos recebê-los ontem à noite, para nos reunimos todos e ouvir as instruções. Conselheiro não queria fazer a reunião, a menos que todos estivessem aqui. Por isso, ficou preocupado e foi buscá-los com Experiência.
       Cristão – Nosso atraso atrapalhou vocês em alguma coisa?
       Peregrina desconhecida – Bom, na verdade havia outras coisas planejadas para esta manhã; acho que serão feitas mais tarde. Conselheiro quer terminar logo os preparativos para que continuemos viagem.
       Cristão e Cristã ruborizaram. Cristã pensou: “Então nossa caminhada na Ponte da Vaidade não atrasou a nós somente, mas a todo este grupo de peregrinos”.
       “... e por isso enviamos mais uma escolta para sondar. Creio que o caminho estará limpo e seguro para passagem”, continuava Conselheiro.
    “Qual o seu nome?”, perguntou Cristão, ainda sussurrando.
       “Pois não, Cristão?” – Conselheiro os ouvira. “Vocês têm alguma dúvida sobre o reconhecimento de campo?”
       “Não, senhor.”
   “Bom”, prosseguiu, “vamos cuidar logo de algumas necessidades. Todos vocês precisam estar preparados para o resto da sua jornada. Devo começar com uma pergunta: todos aqui entraram pela Porta Estreita?”
       Todos assentiram.
       Conselheiro – Todos aqui, então, têm em mãos o certificado que é entregue aos que passam por ela?
       Todos, à uma, apresentaram seus certificados.

       Conselheiro – Muito bem, irmãos. Saibam que apenas os verdadeiros peregrinos possuem essa prova em mãos; lembrem-se das três proposições que esse diploma traz: (1) este peregrino crê na verdade; (2) este peregrino anda na luz; (3) este peregrino ama os irmãos. Mediante essas coisas, vocês sabem que pertencem a Deus.
       Bom, essa foi a primeira questão, a mais crucial – continuou ele –; prossigamos à segunda, também muito importante. Quem de vocês está aqui sozinho, isto é, não estava acompanhado de outros irmãos antes de chegar aqui?
       Quatro peregrinos levantaram suas mãos; dois deles estavam no grupo de peregrinos pobres; o terceiro era um jovem bem vestido, e a quarta era uma senhora de aparência amável.

       Conselheiro – Vocês perduraram em coragem em uma situação incomum. Deus os recompense pela sua perseverança e ânimo em terem se mantido firmes. Porém, eu lhes aconselho e exorto: a partir deste ponto do caminho, vocês devem se manter juntos de seus companheiros peregrinos, tanto pela sua necessidade deles, como deles de vocês; só assim conseguirão suportar os desafios que os esperam mais à frente.
       Prosseguiu, então, e falou: “quem de vocês ainda não tem armas e equipamentos de ataque e defesa?”, ao que alguns levantaram suas mãos; “à sua saída, então, passem pelo nosso arsenal, e peguem as armas que lhes foram reservadas.”
       Além disso – continuou – Está alguém dentre vocês doente? Vocês se feriram no caminho?
       Vários dos presentes levantaram as mãos. Via-se claramente que alguns tinham feridas externas, envoltas em bandagens sujas de sangue. Muitos tinham feridas pustulentas que cheiravam mal. Outros tinham chegado mancando do interior do santuário. Um ou outro tinha um membro amputado. Havia ainda outros que andavam guiados pelos companheiros, como cegos. E vários outros diziam seus problemas:
       “Meus ossos estão envelhecidos”, disse um homem de aparência exausta.
       “Eu acabo de sair de um lamaçal horrível”, disse um homem cheio de lodo.
       “Não consigo me movimentar”, disse um homem cujo corpo estava preso por cordas.
       “Eu quase me afoguei”, disse outro com a roupa suja de algas.
       E não poucos apresentavam outros problemas, como tremores, febre, desânimo e insônia.
       Conselheiro, então, juntou-os e, orando em favor deles, ungiu-os com óleo. Ele disse: “A oração da fé salvará o doente, e o Senhor o levantará; e, se houver cometido pecados, ser-lhe-ão perdoados.” Erguendo suas mãos, disse:

          Abençoe o Pai com seu amor
          Guarde-os na mão o Poderoso Pastor

          Brilhe em vós a luz do seu rosto
          Claro como o dia
          Os que olham para ele
          Estão radiantes de alegria

          Ungidos com o óleo, unidos em gratidão
          Sede cheios do Espírito, e da sua comunhão
          Abri a boca, uns aos outros edificais
          Com melodias e cantos espirituais

          Cubra-os o Cristo com seu sangue eficaz,
          Seja sobre vós a Graça e a Paz

       Levantando seus olhos para todos, disse: “Confessem as suas culpas uns aos outros, e orem uns pelos outros, para que sejam sarados.”
      Todos se entreolharam. Após alguns momentos de silêncio, a mulher idosa começou a relatar seus pecados. Dos mais velhos aos mais jovens, um a um, todos começaram a falar ao mesmo tempo. Um burburinho começou no local, enquanto cada um se dirigia a seu próximo, confessando seus pecados. Alguns batiam no próprio peito, outros choravam. Alguns falavam em grupos; outros se afastavam para falar a sós com outros irmãos. Todos permaneceram assim por algum tempo.
       Cristão e Cristã aproveitaram o momento para confessar novamente seus pecados um ao outro. Também o fizeram diante de todos os irmãos, lamentando os terem atrasado; também ouviam sobre os pecados e fraquezas de seus companheiros. Muitos também oravam a Deus, e as orações se misturavam em meio ao ambiente.
       O silêncio foi gradativamente voltando ao saguão, à medida que todos se aquietavam. Conselheiro, então, perguntou-lhes: “Como vocês se sentem?” Ainda que não recuperados completamente em seu vigor, os viajantes se sentiam bem melhor, como se um fardo lhes fora tirado das costas.

       Conselheiro – É importante que vocês confessem seus pecados uns aos outros, pois fazem parte do mesmo corpo. Vocês são remédio uns para os outros, assim como o ferro afia o ferro; um verdadeiro amigo que conhece seus pecados e os cura com paciência e benevolência é um bem precioso. Um pecado não confessado cria raízes, mas onde há um amigo fiel, há vitória. Vocês são membros uns dos outros. Assim, “não deixarás de repreender o teu próximo pelo pecado, mas amarás o teu próximo como a ti mesmo”. Façam isso, e levem assim os fardos uns dos outros, pois isso é cumprir a lei de Cristo. Usem da língua de forma sábia; pois melhor é a repreensão feita abertamente do que o amor oculto, e há palavras que ferem como espada, mas a língua dos sábios traz a cura. Portanto, se algum de vocês for surpreendido em algum pecado, que os demais o restaurem com espírito de mansidão. Sejam também prontos para ouvir.
       Por fim, quem aqui ainda não tem o Mapa? – e finalizou por entregar cópias do mapa daquela terra àqueles que ainda não o tinham. Sentando-se todos novamente, prosseguiu para conhecer melhor seus companheiros, dirigindo-se ao grupo de peregrinos excêntricos.

       Conselheiro – Pois não; ouçamos agora. Quem são vocês e de onde vêm?

terça-feira, 17 de maio de 2016

Caminho Fiel [Pt. 10] Os peregrinos entram no santuário de Deus

   Três pessoas estavam sentadas, conversando entre si, quando os peregrinos entraram, com Conselheiro. À chegada dos visitantes, as três se levantaram e foram cumprimentá-los.
       “Sejam bem-vindos”, disseram. “Quem são estes com você, Conselheiro?”
       “Estes são dois viajantes, que saíram das suas terras de nascença para irem até a Cidade do Rei. Eles serão uma boa companhia para vocês. Agora me contem, vocês têm feitos seus preparativos para continuar sua jornada?”
       “Sim”, respondeu um deles. Já descansamos aqui, enquanto nos dedicamos à oração e à leitura dos pergaminhos que nos foram dados, pedindo forças ao Senhor. Além disso, fizemos como o senhor falou: estudamos toda a área em redor e saímos em pequenas rondas de reconhecimento, para que aprendamos mais sobre o local. Sinto que estamos agora preparados para trilhar os trechos seguintes do caminho.”
       “Além disso”, continuou a jovem ao lado dele, “temos observado todo o ambiente distante ao redor, há três dias, com a luneta do observatório. Descobrimos que há uma ponte inacabada, que parece abandonada, e terras firmes, na direção nordeste, cheias de árvores, algumas frondosas, outras malcuidadas. Mais à frente, a oeste, não conseguimos ver muito à frente das dunas de areia, a não ser luzes que parecem vir de um vilarejo, algumas léguas adentro.”
       O terceiro concluiu: “E vimos, na noite passada, dois viajantes que acenderam uma tocha na beirada da ponte inacabada, chamando nossa atenção. Subimos, então, para ver se davam algum sinal para nós. Percebemos ser um homem e uma mulher, que se preparavam para consertar a ponte (e era uma bela ponte), com vários utensílios diversos. Então, estando eles na beirada, de repente escorregaram e caíram na água.”
       Os dois peregrinos empalideceram com essa notícia.
       Então Cristão lembrou da Escritura:

              Certamente tu os puseste em lugares escorregadios; tu os lanças em destruição.

       Tremendo de medo, e tomada pelo temor de Deus, Cristã sentiu vir à sua mente a frase: “O caminho dos ímpios perecerá”. E orou silenciosamente: “Volta, minha alma, para o teu repouso, pois o Senhor te fez bem. Porque tu, Senhor, livraste a minha alma da morte, os meus olhos das lágrimas, e os meus pés da queda.”

sexta-feira, 13 de maio de 2016

Caminho Fiel [Pt.9] Os peregrinos saem da gruta

     Terminada a longa conversa, sentiram pesar sobre eles todo o cansaço da viagem que haviam feito até então. Foram, então, convidados a descansar um pouco nas almofadas ao redor da mesa, pois todo aquele cenário havia sido preparado especialmente por Conselheiro e Experiência para alívio e descanso dos peregrinos, visto que eles mesmos haviam, anos antes, trilhado o mesmo trecho sozinhos, tendo quase desfalecido. Dormiram pesadamente, até se recuperarem completamente de seu sono. Assim que acordaram, encontraram a mesa novamente farta de comida, com Conselheiro ao lado deles. Assim que se alimentaram novamente, Conselheiro lhes disse que deveriam partir de imediato, para não perder o precioso tempo para prosseguir na caminhada. Ele os acompanharia, disse, enquanto Experiência havia se ausentado para ajudar outros irmãos em outras partes do caminho.
     Prosseguiram, ainda iluminados pelas tochas, felizes por terem sido renovados de forma tão inesperada. Agradeciam a Conselheiro enquanto faziam o resto do percurso, tendo em mente o quanto estavam melhores, mais seguros e mais sábios, tão somente por terem encontrado em seu caminho esses irmãos mais experientes, e se beneficiado de seus conselhos. "Nós ficamos aqui por semanas", disse Conselheiro. "Não teríamos conseguido sair daqui se o Senhor não nos tivesse levantado. Por isso, buscamos ajudar os viajantes, para que não tenham de passar pelo sofrimento que passamos, e também para que possam prosseguir mais rapidamente, com nossa ajuda."
     Finalmente, chegaram à outra ponta. Apesar de ainda não enxergarem nada, podiam ouvir novamente, ao longe, o som de ondas. Havia também um leve canto de pássaros que começava a se misturar com o barulho das águas, ao início da manhã. Saindo da gruta, viram-se numa praia calma e aberta, tendo ao lado deles o mar, junto ao grande rochedo, e à sua frente, ao longe, morros arenosos. O sol estava a meio caminho de nascer completamente, vindo de detrás do mar e iluminando as dunas. Toda a paisagem era muito agradável. Conselheiro lhes disse: vamos, nosso destino por hoje está um pouco mais acima. Levantando os olhos para o alto, os peregrinos viram que havia uma espécie de palácio construído sobre a grande rocha da qual tinham saído, a qual era bastante extensa, formando o que parecia uma chapada ladeada pelo mar.
     “Subamos até lá”, disse Conselheiro.
     Demoraram pouco tempo, pois havia sido esculpida, na rocha, uma escada íngreme que levava ao topo. Chegando lá, avistaram o palácio: era imponente em sua aparência, magnífico no seu exterior, tendo vários pórticos, escadarias e enfeites.
     “Que lugar é esse?”, perguntou Cristã.
     “Este é o santuário de Deus”, respondeu Conselheiro.
     Entraram. O silêncio de imediato os envolveu. O barulho das ondas tornara-se repentinamente inaudível. O canto dos pássaros, porém, parecia mais alto e claro. Todo o lugar por dentro era muito suntuoso. Não parecia haver uma grama sequer de qualquer sujeira ou poeira. O primeiro cômodo onde entraram era amplo, e parecia servir para o acolhimento dos recém-chegados. Havia enormes janelas de vidro de todos os lados, que mostravam a paisagem em redor. Eles podiam agora ver o mar azulado e a grande rocha que o cortava. O sol já aparecia no horizonte, na extremidade do mar de onde eles tinham vindo. O brilho alaranjado se esparramava pelas poucas nuvens ao redor do sol nascente. O vermelhão da rocha começava a luzir sob a meia-luz. As águas estavam tranquilas, e as dunas pareciam majestosas em sua cor bege, que fazia um meio-tom com a rocha e a aura do sol. A visão toda era de tirar o fôlego.

Um texto explicando o Evangelho

Escrevi este texto com o propósito de compartilhar o Evangelho, a mais importante mensagem que o ser humano pode ouvir.

Livreto em PDF

sexta-feira, 6 de maio de 2016

Caminho Fiel [Pt. 8] Conselheiro e Experiência explicam sobre as pontes

       Seguiu-se mais conversa, em que os peregrinos relataram a seus amigos tudo o que tinham feito depois de terem conhecido um ao outro. Contaram tudo sobre a ponte, como quiseram caminhar por ela, e como tiveram de voltar, depois.
       Quando terminaram o relato deste último cenário, Cristão expressou suas dúvidas:
       “A ponte que encontramos; não foi construída pelos nossos? Nós certamente reconhecemos a madeira nobre, famosa por existir apenas nos bosques do Rei, e da qual Ele utiliza para construir seus Jardins Fechados. Pensávamos que a ponte nos conduziria a um deles.”
       “Bem”, replicou Experiência, “vejo que vocês precisam de conselhos experientes sobre esse assunto, e estamos felizes em ajudar, pois a leitura do Mapa que vocês têm, somente, não lhes pode conceder a prudência de que precisam.”
       “A verdade é que o Rei tem, de fato, seus Jardins Fechados, o qual prepara para alívio dos peregrinos solitários, para dar-lhes forças para caminhar, sendo cada um desses jardins permitido a apenas dois peregrinos, para o desfrutarem, e mais ninguém. É-lhes permitida entrada neles para que espelhem, caminhando juntos, Sua natureza e Seu amor pelas ovelhas. Esses jardins permanecem disponíveis apenas em algumas épocas do ano, acessíveis apenas àqueles viajantes escolhidos pelo Senhor do caminho. Suas entradas e saídas consistem em pontes, as quais são construídas no modelo em que vocês viram; fazem parte, assim, do caminho. Vocês podem sempre reconhecer uma ponte verdadeira, pois está trancada com um cadeado antigo, chamado Dor, o qual pode ser aberto apenas com uma chave muito rara, chamada Amor Incondicional.”
       “Suponho que vocês não viram cadeado algum?”, prosseguiu Experiência.
       “Não”, responderam.
       “Nem possuem chave tal como essa?”
       Hesitaram alguns momentos, e então responderam, envergonhados: “Não”.
    “Experiência”, disse Cristã, “como podemos, então, encontrar ou construir uma ponte verdadeira?”
       “A verdade”, respondeu Experiência, “é que ninguém pode construir para si uma ponte segura que leve a um Jardim Fechado, ainda que tenha a matéria-prima e os recursos para isso, tendo todas as condições favoráveis, e ainda que a disposição de seu companheiro e a sua própria estejam completamente inclinadas para isso.”
       “Então como se explica que os peregrinos conseguem esta graça?”, perguntou Cristão.
       “Bem disse você”, replicou Experiência, “quando a chamou de ‘graça’; pois é apenas o grande Carpinteiro, o príncipe, que pode construir tais pontes. Se o Senhor não edifica-las, em vão trabalham os que as edificam.”
       “Além do mais”, continuou Experiência, “vocês me relataram que se encontraram pouco antes de terem avistado a ponte. Não foi assim?”
       “Sim, nos deparamos com a ponte logo depois de nos conhecermos”, respondeu Cristã.
      “Minhas queridas ovelhas... o que estavam pensando? Acaso não tinham consciência da seriedade daquilo que buscavam?”
       “Tínhamos”, respondeu Cristão, desconfiado.
       “Acaso não sabem que entrar numa ponte é uma decisão muito importante, que afetará todo o caminho? Por que, então, agiram tão precipitadamente, subindo nela com alguém que tinham acabado de conhecer?”
       Ambos apenas escutavam.
       “Vocês correram um duplo perigo: primeiro, o risco de subir numa ponte com um inimigo (pois o caminho está repleto de lobos e falsos amigos, como vocês certamente comprovarão mais à frente); segundo, o de serem motivo de tropeço para um irmão. Vocês não poderiam ter se aventurado numa ponte sem que antes soubessem tudo sobre seu companheiro – planos, virtudes, defeitos, pensamentos e história. Pois, como lutarão como uma só carne, se não conhecerem os defeitos e tentações um do outro? Em verdade digo a vocês, que se não conhecerem um ao outro, sim, tão bem quanto possível, jamais poderão forjar uma chave do Amor Incondicional, da qual falei. A menos que ela seja forjada do metal mais sólido, chamado Confiança, ainda que forjada, ela se quebrará.”
       Envergonhados, ambos escutavam, atentos.
       “Assim, se pretendem algum dia cuidar de um jardim, vocês devem fundir e refinar tal metal precioso, na fornalha da Transparência e Honestidade, purificando-o da escória das mentiras e omissões, que são engano.”
       Havia silêncio no ambiente. Cristão, porém, ainda deixou escapar:
       “Por que, então, o Senhor colocou esse tropeço em nosso caminho, se não o seríamos capazes de suportar? Por que ele permitiu que fôssemos tentados, se não estávamos preparados?” Ao que Conselheiro, tomando a palavra, respondeu:
       “Ouçam, pois: não é bom agir sem pensar; quem tem pressa erra o caminho. Esse foi o erro de vocês. A verdade é que a tolice do homem transtorna o seu caminho, mas é contra o Senhor que seu coração se irrita. De que se queixa, pois, o homem? Queixe-se cada um dos seus pecados.”
       Compungido em seu coração, Cristão sentiu que a tristeza segundo Deus o invadia, inundando-o de arrependimento.

       “Bom”, continuou Conselheiro, “Experiência mencionou que apenas o Rei pode construir as pontes que levem a seus Jardins.”. “Quanto a isso, não lhes resta nada a fazer a não ser preparar-se (e esta é uma tarefa extraordinária, como irão aprender aos poucos, e como espero ensiná-los) e seguir o caminho reto, esperando os desígnios do Senhor. Se estão cansados, e sentem que precisam de alívio, e que cuidariam bem de um jardim, ouçam o meu conselho: orem incessantemente, para que o Senhor do caminho faça a Sua vontade para com vocês, e apliquem-se a serem havidos dignos de forjarem chaves como a que falamos, tarefa dificílima. Quanto ao mais, esperem no Senhor, animem-se, e ele fortalecerá o coração de vocês. Esperem no Senhor.”
       “Seu conselho é fiel, bom amigo, e nós o seguiremos”, afirmou Cristã. “Somos gratos pelo cuidado e alívio que vocês nos têm ministrado. Mas ainda não responderam a pergunta de Cristão.”
       “Que pergunta?”, disse Conselheiro.
       “Sobre a ponte que encontramos. Pelo que vocês nos têm falado, ela não era uma ponte legítima. Como pode isso acontecer? Que era, então, aquilo que encontramos (pois, como disse Cristão, ela parecia tão real)?”
       “Bem lembrado, Cristã”, disse Experiência, retomando a palavra. “Vocês fazem bem em perguntar, pois é benéfico para os peregrinos aprenderem com seus erros passados, os quais lhes servem de disciplina, quando considerados com instrução e arrependimento.”
       “A ponte que viram tem muitos nomes. Ela foi construída pelos artífices da Feira das Vaidades, um antigo centro comercial das nossas terras. Ao longo de muitos séculos, peregrinos de todas as terras caíram em sua armadilha, para se desviarem do Caminho. Alguns a chamaram de Ponte da Vaidade; outros, Ponte do Amor Idólatra, visto que os peregrinos desejavam mais os seus tenros prazeres do que a alegria do caminho; ainda outros a chamaram de Ponte das Paixões da Juventude, da qual um antigo mestre, por nome de Paulo, escreveu, aconselhando seu discípulo a fugir dela. Mas o nome pela qual tem sido mais chamada ao longo destes séculos é simplesmente Ponte da Ilusão, pois não leva os peregrinos a lugar algum, a não ser ao vento.”
       Neste ponto, ambos tinham lágrimas nos olhos, tanto por se envergonharem de terem caído em tal armadilha, tendo perdido tanto tempo em sua caminhada; como por gratidão ao Senhor, que tão bondosamente os trouxera de volta ao caminho certo; percebendo também o quanto este era reto.
       “E o que acontece, então, com os outros que sobem essa ponte? Eles não voltam atrás, como nós o fizemos?”, perguntou Cristão.
      “Na verdade”, continuou Experiência, “são poucos os que voltam antes de sofrerem consequências maiores. Alguns, por se revoltarem contra o Senhor do caminho, voltam da ponte, mas não retornam jamais ao caminho estreito. Outros conseguem retornar, porém levam consigo cicatrizes e manchas que os acompanham pelo resto do caminho, ou pelo menos por uma boa distância. Há também outros que pulam nas águas, esperando encontrar terra firme, e se afogam. Outros, ainda, conseguem nadar até terra firme.”
       “Então estarão seguros, precisando somente encontrar o caminho reto?”, perguntou Cristão.
       “Sinto dizer que não. Acontece que a gruta em que estamos é bastante longa, e jamais os aventureiros que se jogam nas águas naquele trecho poderiam nadar distância tão grande a ponto de chegar ao lugar onde vocês sairão. As únicas terras próximas, para as quais poderiam nadar com segurança, são os jardins babilônicos, imitações dos jardins do nosso Rei, que os ignorantes chamam de Jardins da Felicidade, mas que nós chamamos Jardins de Ruínas; pois não visam dar descanso aos peregrinos em busca da sua amada Cidade, mas tornam-se a morada final dos que neles se acomodam; estas pobres almas desistem, assim, de ganhar a bem-aventurança eterna, trocando-a por uma vida tranquila e de boa companhia, cada um buscando sua própria felicidade. E, assim, com os corações carregados dos cuidados, riquezas e deleites deste mundo, permanecem entretidos em seus jardins. Por fim, esses mesmos jardins acabam por ser sufocados por espinhos, e lá jazem seus donos, em terras de espinheiros e de animais do deserto, habitadas apenas por corujas e chacais.”
       “Ouçam agora, meus filhos”, começou a dizer Conselheiro, “e prestem atenção às nossas palavras; guardem a repreensão, e deem ouvidos à disciplina. Prestem atenção ao caminho; não se desviem nem para a direita nem para a esquerda. Ainda que o caminho seja estreito e difícil, todavia a vereda dos justos é plana. Não desejem no coração os prazeres dos atalhos; antes, sejam como o antigo peregrino, que disse: “Sinto prazer nas fraquezas, nas injúrias, nas necessidades, nas perseguições, nas angústias por amor de Cristo. Porque quando sou fraco, então sou forte”. A graça do Senhor vos basta, pois Ele conhece o caminho dos justos, e nele vocês serão prósperos em tudo o que fizerem, pois em todas as coisas são mais que vencedores. Tão somente guardem o que já lhes foi dado, e nisto permaneçam, até que o Senhor os alivie. Jamais se aventurem por qualquer ponte, a não ser que observem duas coisas: (1) que tenham, desde o início de sua subida, plena certeza de que foi o Senhor que a edificou para vocês e a colocou em seu caminho; (2) que tenham em mãos a chave da qual precisam para atravessá-la. Sobretudo, guardem o seu coração, e não se desviem do firme propósito de subir diretamente à Cidade Celestial, a alegria das suas almas.