quarta-feira, 19 de outubro de 2016

Mais um tipo de antinomianismo (antinomianismo dos juristas e religiosos)

[Escrito em Dez 2015]

[Comentário do livro "Como posso desenvolver uma consciência cristã?", de R.C. Sproul, parte 2]

Postei, há alguns dias, um comentário sobre esse livro de Sproul, onde listei os tipos de antinomianismo (anti+ nomos = ideologia contra a lei, repúdio à norma) que ele aborda.

Se eu pudesse, ainda acrescentaria um quarto tipo de antinomianismo à lista.

Tenho dúvidas quanto ao nome que daria a ele; mas sei que funciona mais ou menos da seguinte forma: há um repúdio geral à ideia de obedecer à lei. Se a lei diz: "É permitido entrar de sapatos", a tendência das pessoas é querer entrar de chinelos. Se a lei diz: "Você deve escrever com caneta preta", as pessoas querem usar caneta vermelha (alguém aí lembrou de Romanos 7? hehe). Recentemente, na sala de aula, vi colegas meus questionando o professor porque ele queria que marcassem "C" ou "E" na questão, não permitindo que usassem as letras "V" ou "F", sob pena de não receberem a pontuação. Enquanto ele argumentava, dizendo que os alunos deveriam simplesmente obedecer às regras colocadas no enunciado da prova, meus colegas riam dele. "Não se pode interpretar as leis literalmente", diziam.

Existe um repúdio geral à ideia de se conformar à lei. Se alguém tenta dissuadir outro de fazer algo, argumentando que a lei o proíbe, é simplesmente acusado de legalista. É como se obedecer às leis fosse legalismo. É como se fosse um pecado, uma falha de caráter interpretar as leis de forma literal. "Legalista" se tornou um rótulo para pessoas que ainda querem, de alguma maneira, obedecer ao que a lei diz. As pessoas se sentem desconfortáveis se você simplesmente disser: "O que a lei está dizendo, é isto que ela quer dizer; só nos cabe cumpri-la". Muitos, no meio jurídico, até ficam revoltados se você disser: "A lei é clara", porque para eles é um insulto abominável dizer que existe uma lei de sentido claro, que não podem moldar às suas "interpretações". Eles querem torcer a lei para que signifique o que eles querem. Esse é o extremo oposto do legalismo: sob o pretexto de não ficarem presas à letra da lei, as pessoas flagrantemente mudam o seu sentido da forma como querem. E dão a isso os nomes mais exóticos: "interpretação extensiva", "nova hermenêutica tal e tal". Tenho um certo contato com esse tipo de antinomianismo porque ele infectou o ambiente jurídico até ao coração. O espírito da nossa época, na comunidade jurídica, é esse: anti nomos. Reação contra a norma. Oposição à lei. Inclusive, não tenho dúvida de que muitos colegas meus, lendo este texto, afirmariam de cabeça erguida: "Sim! Nosso espírito hoje é, de fato, nos insurgirmos contra a lei! Não nos submetemos à sua letra e e questionamos o que ela diz. Nosso espírito é nos libertamos dessas amarras de termos que obedecer a leis fixas", e teriam orgulho disso. O espírito da nossa época é antinomiano. Somos ensinados a "pensar" assim na faculdade de Direito.

Vejo, assim, que um paralelo muito bom poderia ser feito entre a comunidade jurídica de hoje em dia com a comunidade judaica dos tempos de Jesus e com o catolicismo da Idade Média (e de hoje): nenhuma das três vê problema algum em abandonar o real sentido da lei, contanto que o façam em conformidade com a tradição ou consenso da sua época. Se todos questionam a lei, está tudo bem, contanto que inventem "princípios jurídicos" que os fundamentem. Não importa se a Constituição diz: "homem e mulher"; nós podemos simplesmente entendê-la como dizendo "homem e homem", se tão somente nos juntarmos todos para afirmar isso. E, pasmem, isso é louvado entre os estudantes de Direito! É louvável mudar o sentido da lei para seu exato oposto, enquanto que é vergonhoso dizer: "Tenho que me conformar ao que a lei diz." O sentido desse tipo de antinomianismo é este: se os doutores e mestres afirmam algo, então é válido, mesmo que contradiga o que a lei diz. A opinião, tradição ou cultura está acima da lei. As três comunidades eram exatamente iguais nesse ponto.

Que nome poderia dar para esse tipo de antinomianismo?

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