Ah... Missionário, né?

Para nós, que estamos no meio cristão, e temos contato frequente com missionários, evangelismos, impactos, eventos missionários, etc., é muito comum nos depararmos com a seguinte situação: ouvimos falar que, por ocasião do seu envolvimento com missões, algum irmão tem de enfrentar alguma(s) das seguintes privações:
- Tomar pouco banho
-Comer comida racionada
-Dormir pouco
-Possivelmente, comer alguma coisa estranha que lhe seja oferecida.
E, diante dessas necessidades, a reação mais comum é a famosa frase:
“Ah... Missionário, né?!”.
Essa pequena exclamação tem mais ou menos o seguinte significado: "Ah, é compreensível que ele(a) precise passar por isso. Já que é missionário(a), suporta isso, para fazer a obra (evangelismo) de forma mais eficaz. É necessário que os missionários, por estarem à frente desse trabalho tão pioneiro e importante, estejam dispostos a enfrentar essas dificuldades para levar o evangelho para as pessoas."

Meu propósito neste texto é mostrar como, a meu ver, essa pequena frase esconde uma visão equivocada da figura do "missionário"; além de, muitas vezes, revelar certo orgulho por parte daqueles que fazem essa obra.

1. Perceba bem como terminei o parágrafo anterior: "essa obra", e não "a obra". A primeira coisa que gostaria de ressaltar é o fato de usarmos o artigo definido ("a" obra) para nos referirmos à obra missionária, especialmente em círculos envolvidos com missões. O primeiro equívoco que temos é que não enxergamos missões como apenas uma dentre várias áreas da vida cristã. A obra missionária é vista, muitas vezes, como a missão mais sublime que existe na Igreja de Cristo; como aquilo que há de mais importante na nossa existência como cristãos (!). Já vi, inclusive, frases nas redes sociais que diziam algo do tipo: "Missões, a razão de ser da Igreja". Esse é um problema muito comum: para pessoas como nós, envolvidas com missões e que querem ser missionários, é muito fácil acreditar que a nossa vocação é a mais sublime de todas. Vemos a vida cristã como tendo seu ápice no evangelismo. E, por isso, consideramos como "medianos" os cristãos que não se envolvem muito com isso (vou abordar o assunto um pouco mais no próximo ponto). Achamos, muito frequentemente, que a nossa área é a mais importante: "o cristão existe para evangelizar". Mas isso pode ser uma espécie de idolatria. O cristão não existe para evangelizar. O cristão existe para adorar a Deus. E isso pode ser feito de muitas formas – orar, ler a Palavra, cultuar a Deus em grupo, louvar, dançar, cantar, comer, beber e fazer qualquer outra coisa. Cada coisa em seu devido espaço, cada uma delas ordenada por Deus para Sua glória. É sempre muito fácil, para nós, puxarmos a sardinha para a nossa área de atuação. É claro que o ministro de louvor tende a pensar na Igreja como uma instituição de adoração, e no culto como expressão de louvor. É claro que o pregador enxerga o mundo e a igreja como um grande campo de pregação. É claro que o conselheiro enxerga a Igreja como um grande corpo de pessoas precisando de aconselhamento. Sempre olharemos para o mundo e para a Igreja com as lentes daquilo que mais gostamos de fazer. Dessa forma, nós, que evangelizamos, devemos ter cuidado para não enxergar a Igreja como dividida em dois grupos: os que evangelizam e os que não evangelizam. É muito fácil olhar para sua igreja local e dizer: "as pessoas não evangelizam."
Certo. Eu sei que de fato existe uma grave situação atual, onde os evangélicos desprezam o caminho estreito. São poucas as ovelhas dentro das igrejas. (Não estou dizendo que aqueles que não evangelizam são necessariamente não-convertidos. Houve um tempo em que você também não evangelizava – e talvez ainda haverá). Mas, além disso, veja os outros pontos: você é muito ativo em evangelismo. OK. Mas como é você na área da oração? Quanto tempo você ora por dia? Você acharia correto que todo o povo de Deus orasse assim? Como é você no estudo da Palavra? Você se alimenta com frequência da Palavra de Deus, e busca conhecê-la profundamente (ainda mais por estar pregando-a a outros!)? Como é você em termos de submissão aos pais e autoridades? Você demonstra o mesmo zelo que tem ao evangelizar para obedecer seus superiores, na medida em que eles são fiéis à Bíblia, e respeitá-los?
Assim, o primeiro ponto que acho necessário pensarmos é que a Igreja não existe para evangelizar; ela existe para glorificar a Deus. Missões é apenas uma parte disso. Como disse John Piper: "Missões existem porque adoração não existe". É apenas e simplesmente porque Deus não é ainda adorado em todas as nações que existe coisa tal como missões. Nós fazemos missões para que o Deus vivo seja adorado até os confins da Terra. Não estou diminuindo o amor pelas almas; eu amo pensar, e até mesmo anseio pela perspectiva de ser usado por Deus para reunir as ovelhas que ainda Lhe faltam, e trazer meus irmãos que ainda estão perdidos das trevas para a luz. Mas essa obra maravilhosa um dia cessará. Um dia o Grande e Bom Pastor terá reunido todas as suas ovelhas num só rebanho. Quando isso tiver acontecido, nós continuaremos fazendo obras fantásticas, glorificando a Deus, mesmo que as missões já tenham cessado para sempre. Assim, nós só fazemos missões como um meio, que visa um fim maior: a adoração a Deus em todas as nações. E, se a adoração a Deus é o fim, então as missões devem ser colocadas em seu devido lugar: não a obra, mas uma obra, dentre as muitas que Deus nos ordenou.

2. Frequentemente, em eventos missionários, nos deparamos com situações como "precisaremos dormir apenas quatro horas essa noite", ou "precisaremos comer de forma racionada, com pouca carne, feijão, etc.", ou "tomar banhos limitados / de balde", e outras privações que podemos viver em campos missionários. E aí, vem a justificativa de sempre: "Ah... missionário, né?". Você sabia que essa visão pode trazer uma espécie de orgulho missionário? Bem, aparentemente, é uma expressão de humildade e disposição em servir e enfrentar situações de vivência simples, para um propósito maior. Mas talvez haja nisso um orgulho oculto. Antes de mais nada: sim, acredito que as pessoas que falam isso estão bem-intencionadas, e realmente estão sendo humildes em enfrentar situações adversas pela alegria de pregar o evangelho. O que quero analisar é apenas o que existe por trás, não da disposição em servir, mas dessa frase tão utilizada. "Ele vai pra um local onde não tem banheiro e encanação..."; "É... missionário!".
A pergunta que surgiria é: acaso outras pessoas não enfrentam privações na Igreja? O irmão lá no interior, que vive constantemente em condições difíceis (as quais conhecemos apenas enquanto estamos num evento missionário), também não sofre? A mulher que suporta seu marido descrente com mansidão e amor, como diz a Palavra, também não sofre por amor a Cristo? O estudante que enfrenta a pressão da família para passar num concurso e buscar as riquezas deste mundo não sofre para servir a Cristo? Aqueles que lutam para trabalhar todos os dias e sustentar suas famílias, e além disso conseguir criar seus filhos firmados no caminho em meio a um mundo ímpio e perverso, também não enfrentam privações por causa de Cristo? Quantos milhares de cristãos pobres não existem, que enfrentam privações financeiras em sua rotina? Por que, então, destacamos tanto o nosso próprio sofrimento como missionários, quando, por alguns dias (ou semanas, ou meses) compartilhamos das suas privações? O meu ponto aqui é o seguinte: em todas as áreas da Igreja os cristãos sofrem por amor a Cristo. Isso não é um privilégio dos missionários!
Quando dizemos: "Ah, mas é missionário..." face a uma privação que alguém deve enfrentar, na verdade estamos dizendo: "Ah, mas aqui estamos falando da Tropa de Elite, não é?". Em outras palavras: "Se ele estivesse na polícia civil (ou seja, um "soldado raso", isto é: um crente comum), poderia até não enfrentar isso... mas ele está na Tropa de Elite! (ou seja, numa equipe missionária)". Então, na verdade, quando nos dispomos a suportar alguma privação com o fim de evangelizar, e dizemos: "Fazer o que, né? Missionário...", estamos dizendo que fazemos parte de uma elite dentro da Igreja que está disposta a realmente fazer a obra que a maioria não quer fazer. Vemos os outros cristãos como acomodados, mornos, preguiçosos, rasos. Mas nós, não... Nós realmente estamos dispostos a sofrer.
Isso está errado! Nós não somos uma elite espiritual. Não somos mais especiais do que os outros só porque fazemos missões. Tocamos muitas trombetas diante do nosso sofrimento como missionários, que na maioria das vezes nem é tão grande assim. Tomar banho de balde e levar sol não são sofrimentos especiais, eu sinto muito!
(Abrindo um parêntese: Por que, quando vamos para o Consciência Cristã, e temos de dormir em colchões no chão, dentro de escolas ou igrejas, não dizemos: "Ah, mas é para a obra!"? Em grande parte, são as mesmas privações que enfrentamos quando vamos para um evento missionário: falta de sono, de banho, comida pouca, calor... Bem que poderíamos dizer: "Ah, mas é pelo conhecimento da Palavra..." Por que ninguém faz alarde em relação a esse sofrimento?).
Além disso, lembre-se de quantas áreas da vida cristã você negligencia, ao mesmo tempo em que se dedica ao evangelismo.
Qual foi a última vez que você jejuou?
Qual foi a última vez que você prestou contas a alguém em relação a pecados e tentações que ainda fazem parte da sua vida?
Qual foi a última vez que você pediu perdão a alguém, humilhando-se sem ressalvas?
Qual foi a última vez que você exortou um irmão que você sabe estar em pecado?
Assim, se você quer ser missionário, ou se participa às vezes de eventos missionários, sinto desapontá-lo: não existe nada de extraordinário (fora do comum) na sua atitude de dormir no chão e tomar poucos banhos. Milhares de cristãos já fazem isso todos os dias, porque isso faz parte da realidade deles, e eles glorificam a Deus pela sua gratidão. Da mesma forma que você sofre (um pouquinho, na verdade), milhares de cristãos sofrem muito mais, sem acharem que o seu sofrimento é mais importante do que o de seus outros irmãos dentro do corpo de Cristo. (Entre eles, talvez, estejam seus pais, que talvez trabalhem muito mais do que você e financiem suas missões).
Por fim, não existe essa categoria "missionário", um cristão mais espiritual acima dos cristãos "mais ou menos"; todo cristão é um missionário! Dentro do povo de Deus, não existem favoritos: todos são um corpo. Com isso, não estou dizendo que não existem missionários de tempo integral (eu mesmo quero ser um!). O que estou dizendo é que "missionário" não é uma categoria de cristãos especiais. Recomendo a leitura do livro “Missões até os confins da Terra”, de Ruth Tucker, um panorama de biografias de missionários durante toda a história da Igreja. É um bom livro, o qual mostra de forma bem realista os pecados e problemas de personalidade que os missionários (inclusive os mais celebrados) tiveram ao longo da história. Ele traz uma abordagem que desmitifica a figura do missionário-herói.
 Por outro lado, da mesma forma como existem alguns que compartilham do "orgulho missionário" (como se fossem cristãos mais dedicados que os outros), também existem outros, que não estão envolvidos com "a obra" (hehehe), que acham que missionário tem que sofrer. Que missionário tem que viver no aperto, sempre com o básico do básico. Novamente: missionário é um cristão como qualquer outro! Deus dividiu sua multiforme graça, conforme Seu Espírito, entre cada uma das suas ovelhas, para a edificação do corpo.
O missionário não é um super-homem. Ele também é da raça humana! Ele também tem o mesmo corpo criado por Deus. Ele também precisa dormir 6h por dia (atenção, líderes!). Ele também é levado à exaustão depois de horas de atividade intensa. Ele também sua. Ele também toma banho. Ele também tem preferências de comida (sim, é verdade! Lembre-se disso, você que sempre diz pra o missionário que ele tem de comer insetos, tripas e tudo o mais que lhe for oferecido). Ele também não come certas comidas, igual a você que quer ficar na metrópole. Ele também quer tomar sorvete, às vezes, igual a você que quer ficar na metrópole. Ele também quer ter dinheiro para ir no cinema às vezes, igual a você que quer ficar na metrópole. Ele também quer ter um carro legal, igual a você que quer ficar na metrópole. Ele também quer ter um tempo para si mesmo e para sua esposa, igual a você que quer ficar na metrópole.
Mas enfim, o cristão fazendo missões está preparado para não ter boa parte dessas coisas. Afinal... missionário, né?

6 comentários:

  1. Ótimo texto Jonathan! e pra mim, foi uma exortação.

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  2. Muito bom mesmo Jon! Deus lhe abençoe.

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  3. Jon, continue escrevendo assim e nos edificando. Obrigada! Deus encha cada vez mais a sua vida, e dê mais inspirações. ^^

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  4. Este comentário foi removido pelo autor.

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  5. No meio do texto pensei em como a Igreja precisa saber disso, e como eu mesmo preciso escrever isso na porta do meu guarda-roupa para não esquecer. Deus lhe abençoe.

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