sábado, 30 de abril de 2016

Caminho Fiel [Pt. 5] Cristão revela conhecimentos a Cristã


        Após alguns minutos de caminhada pela escuridão, ainda iluminados pela espada da Palavra, e esperando para ver se de fato encontravam a terrível gruta da qual falaram os outros dois peregrinos, Cristão quebrou o silêncio:
        “Quero contar-lhe algo”.
        “Sim, pois não”, respondeu Cristã.
      “Eu conheci aqueles dois na minha juventude. Sei quem são e qual o caráter deles. O “sr. Responsável” é assim conhecido pelos seus amigos e vizinhos, que assim o chamam por desconhecerem a verdadeira virtude do nosso Reino. Seu nome é, na verdade, Ambicioso. Sua companheira, que dizia chamar-se “Romântica”, na verdade chama-se Paixão. Ele nasceu na cidade da Soberba da Vida, enquanto ela vem da vila da Concupiscência, ambos localizados no país da Idolatria. Ela sempre foi movida por suas paixões e cobiças, sendo atraída pelos desejos da carne e dos olhos, por isso seu verdadeiro nome lhe cai bem.”
        “Ele, por outro lado, foi criado em Soberba da Vida, tendo dedicado suas energias, desde a juventude, para estocar recursos materiais. É dito, entre os conhecidos, que seu pai, chamado Rico, lhe deixou uma grande herança, tendo morrido repentinamente num tempo de fartura, logo após derrubar seus celeiros para construir outros maiores que pudessem estocar sua grande colheita. Seu filho, assim, tem, desde que nos conhecíamos, se orgulhado grandemente de suas riquezas, pondo nelas a sua segurança e confiando nas fortalezas da Soberba da Vida. Por isso, seu nome também lhe é muito adequado.”
        “Quanto ao sr. Maturidade, ele na verdade era o príncipe destas terras, o inimigo do nosso Reino, que vem aos peregrinos disfarçado de várias formas, para enganá-los e seduzi-los a amarem seus domínios, e dissuadi-los de viajarem até a Cidade Celestial. Vejo como isso deve ter sido fácil para Ambicioso, nascido em Soberba da Vida, e Paixão, nascida em Concupiscência. Eu conheço o verdadeiro sr. Maturidade, pois o encontrei logo no início da minha caminhada, e ele me disse que havia de tomar cuidado com impostores, que tentariam se passar por ele. Ele me revelou algo curioso: que ele é muito parecido, em sua fisionomia, com o sr. Amor ao Mundo, segundo me disse, de forma que poucos poderiam distinguir entre os dois, caso os vissem lado a lado.”
        “É dito que o sr. Maturidade constituiu uma bela e estruturada família, nos moldes da Palavra de Deus, tendo-se casado com a sra. Verdadeira, e gerado quatro filhos: Responsabilidade, Discernimento, Renúncia e Serviço. Esses quatro, assim como seu pai, também andam pelo caminho estreito ensinando os peregrinos e dando-lhes exemplo de como devem se portar para, crescendo em fé, chegarem finalmente a seu destino final em segurança.”
        “O sr. Amor ao Mundo, por outro lado, é um dos ministros do nosso inimigo, designado para enganar os povos de todas as terras. Ele é conhecido por ser mestre em devassidões, organizando festas, bebedeiras, farras e grandes espetáculos. Poucos, porém, conhecem o seu outro lado. Por vezes, tomado por um certo senso de culpa e responsabilidade, ele tenta reformar sua vida e dedicar-se diligentemente à sua casa, ao trabalho e às coisas que são, por si mesmas, úteis à sociedade.”
        “Então, ele não é de todo mau?”, perguntou Cristã.
        “Infelizmente, não se pode dizer isso. O fato é que, ainda que se dedique nesses períodos a fazer coisas que são úteis, ele ainda mantém a mesma natureza que faz jus ao seu nome: Amor ao Mundo. Assim, ao invés abandonar suas riquezas para ganhar a Pérola de Grande Valor, a qual buscamos, ele se dedica a galgar cada vez mais posições na sociedade, dedicando-se cada vez mais intensamente ao trabalho e procurando fazer um grande nome para si mesmo. Ele busca firmemente coisas que, diante dos homens, são muito elevadas: ser o melhor na sua profissão; ter uma boa casa para morar; ter uma boa respeitabilidade social entre seus semelhantes.”
        “Ainda não entendo”, interrompeu Cristã. “Você me parece estar falando de coisas que são, em si mesmas, boas.”
        “E, de fato, são”, respondeu Cristão. “O que quero mostrar-lhe é que o sr. Amor ao Mundo não busca essas coisas por causa da glória do Criador e do Seu serviço. Não, ele não apenas as possui; mas ele as ama. Ele não utiliza dessas coisas para ajudá-lo a viver no caminho estreito, a saber: praticando esmolas, sendo hospitaleiro, e estando disposto a usar tudo em suas mãos para o Reino de Deus, associando-se alegremente com pessoas de posição inferior; em outras palavras, ele não usa essas coisas para perder a sua vida neste mundo, e sim para aprimorá-la. Ele abandona, assim, o amor luxurioso ao mundo apenas para substituí-lo pelo amor requintado ao mundo. E aí está a raiz de sua condenação: ele ama a sua vida neste mundo. Como nosso Senhor já o disse, aquele que tentar salvar a sua vida, a perderá.
        “Estou perturbada com tamanha sutileza que pode haver nessas coisas.”, disse Cristã.
        “E, de fato, são sutis. E o sr. Amor ao Mundo se aproveita dessa sutileza, pois todas essas coisas, as quais acabo de falar, o tornam bem visto aos olhos de todos. Como já disse antes, o sr. Amor ao Mundo se parece muito com o sr. Maturidade. Não perde tempo, assim, para assumir para si sua identidade e fazer-se passar por ele. Por causa disso, muitos são levados a, crendo que estão seguindo aquele, seguirem este.”
        “O sr. Amor ao Mundo também gerou e educou muitos filhos nesse caminho do qual tenho falado; seus nomes são Excelência Mundana, Autodeterminação e Glória-dos-Homens (assim chamados pela grande prosperidade e honra que adquirem entre os concidadãos das nossas terras), além de Apatia, Sem-Sal, Morno, Indiferente e Ódio-à-Alegria, assim chamados porque, quanto tentam se misturar à congregação dos justos, logo são desmascarados pela ausência de verdadeiros afetos espirituais; mais precisamente, pelo seu desprezo pelos peregrinos necessitados, pelo nosso Reino e por toda alegria verdadeira que a ele está relacionada. Por isso, é dito com sabedoria: A religião pura e imaculada diante do nosso Deus e Pai é esta: visitar os órfãos e as viúvas nas suas tribulações e não se deixar contaminar pelo mundo.
        “Tudo começa a fazer sentido agora”, começou a dizer Cristã, concentrada. “As coisas que você tem dito me lembram bastante da minha vida antes que saísse em peregrinação. Eu conheci vários desses indivíduos, e de fato eram meus amigos, porém não fazia ideia de que eram filhos do sr. Amor ao Mundo. Tornei-me cada vez mais amiga de cada um deles, à medida que ia chegando à idade adulta; até que, chegada a maioridade, passei a acompanha-los por onde quer que fosse.”
        “E o que a fez mudar de ideia?”, perguntou Cristão.
        “Tudo começou quando ouvi uma grande amiga e irmã, chamada Experiência, me dizer uma frase que me penetrou até ao íntimo: ‘Eu lhes asseguro que, a não ser que vocês se convertam e se tornem como crianças, jamais entrarão no Reino dos céus.’ Essa frase me fez temer e tremer de tal modo, que não mais podia suportar a companhia deles, a qual passou a me enojar.”
        “Impressionante”, comentou Cristão em voz baixa. E continuaram ambos a caminhar por algum tempo, absortos em muitos pensamentos sobre o que tinham acabado de conversar.

        “Ah”, disse Cristão, “lembro de algo ainda de que preciso falar. Quando conheci o sr. Maturidade (o verdadeiro), ele me deu uma firme advertência. Acontecesse o que fosse”, começou Cristão, olhando à sua frente, “eu deveria continuar seguindo o mesmo caminho estreito, não saindo dele em hipótese alguma, sabendo que ele é o único que trilha reto em direção à Cidade Celestial.” E, olhando diretamente para ela, continuou: “Sinto muito, assim, pois fui responsável por tomar uma decisão imprudente, a qual poderia ter evitado, e que nos prejudicou a ambos em nossa caminhada. Deveria ter seguido o conselho do sr. Maturidade, ao invés de buscar meus próprios interesses ao ver a ponte desejável.”
        “Não se preocupe com isso... você está perdoado. Sabemos que, ainda que jamais o entendamos, todas as coisas cooperam para o bem daqueles que amam a Deus. Que isso nos sirva de advertência para colocarmos a Cidade Celestial como nossa única felicidade permanente. Mas, permita-me perguntar algo... se você já sabia de tudo isso, por que não me avisou antes, quando vimos os impostores chegando?”
        “Bom...”, disse Cristão, “eu queria testá-la e ver como você interagiria com eles, se seria capaz de perceber e se opor ao erro deles, e se manteria firme diante de um mau conselho. Vejo que Deus a tem dado sabedoria.”
        “Entendi. De fato, Deus dá a sabedoria do alto a todo o que, tendo falta, lhe pede.”
        Permaneceram assim caminhando, no escuro, porém iluminados pela Palavra, até que avistaram a grande rocha na qual o caminho entrava. Apreensivos, entraram.

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