quinta-feira, 3 de agosto de 2017

Evangelização e Reforma [3.1] - O perigo do hipercalvinismo



Pois bem; tudo isso me leva agora a apresentar um dos temas reformados, a soberania de Deus, e como o foco exagerado nela pode levar a um entendimento distorcido da realidade. 

É conhecida a história de William Carey, missionário que queria contribuir para a salvação de uma nação distante, imersa no paganismo, levando ele mesmo o evangelho até eles. Como muitos sabem, os próprios líderes da sua igreja o repreenderam e o desprezaram, dizendo: “Você não precisa ir até lá. Se Deus quiser salvar aquele povo, Ele mesmo cuidará disso, e não precisará da sua ajuda”. Esse fato é tido como exemplo de como algumas pessoas tomaram a crença na soberania de Deus e a utilizaram para anular a responsabilidade humana em cumprir seus deveres. É o exemplo icônico para ilustrar o “hipercalvinismo”.

Será que o hipercalvinismo ainda existe hoje?

Infelizmente, eu diria que sim.

Para exemplificar, pensei em quatro afirmações que se aproximam da postura daqueles homens. Quero ressaltar, porém, que não afirmo aqui que elas são feitas com má intenção; são opiniões equivocadas, mas todas as quatro que aqui coloco, ouvi de irmãos queridos que realmente amam a Cristo. Todos nós temos nossos erros graves em doutrina e conduta. Como diz um bom amigo meu, filósofo e poeta: “cada um sabe a heresia e o fervor que tem no coração”.

São elas:

I – “Deus não ama os não eleitos”. Às vezes, estamos tão empolgados em termos descoberto a doutrina reformada, que reconhece que o amor salvífico de Deus foi estendido apenas às suas ovelhas, que chegamos ao ponto de fazermos afirmações absurdas como essa. Em nenhum lugar a Bíblia afirma isso, apesar de que podemos dizer, de fato, que Ele demonstra um amor diferente e especial ao seu povo. Temos de tomar muito cuidado para não ficarmos bitolados com um vocabulário estritamente calvinista e condenarmos a linguagem que a própria Escritura usa. Provavelmente, ainda escreverei algo sobre isso.

II – “Evangelizar é ter um bom testemunho”.

Todos nós já ouvimos essa ideia muitíssimas vezes, e continuaremos ouvindo até a nossa morte. Sempre há alguém para dizer: “Mas pregar o Evangelho não é só falar...”; “Você pode pregar simplesmente tendo uma boa conduta, não precisa necessariamente falar da Bíblia”; “Pregue o evangelho; e, se necessário for, utilize palavras”. Elas dizem que, para evangelizar, não precisamos necessariamente falar sobre Cristo como Senhor, sua morte, o juízo, a ressurreição, o arrependimento e a fé. Basta que demos um bom exemplo, e as pessoas acreditarão em todas essas coisas simplesmente pela nossa boa conduta.

É preciso dizer enfaticamente: precisamos sim falar do evangelho. A fé vem pelo ouvir da Palavra de Cristo, e não pelo ver a conduta do cristão. O evangelho é, antes de tudo, uma mensagem, com vários pontos específicos, e o ser humano precisa entende-los para se arrepender e crer verdadeiramente em Deus.

Algumas vezes, nossa aproximação será através simplesmente da amizade e da boa conduta, realmente. Temos de estar interessados nas pessoas em si, e não apenas em despejar uma mensagem pronta a todos. Mas só podemos dizer que evangelizamos alguém quando tivermos efetivamente contado o evangelho.

III – “Evangelizar é pregar na igreja”. Essa frase não é falsa, porém não abarca toda a verdade. Na verdade, acho que até podemos dizer sim que ela é falsa. Pregar na igreja é evangelizar, em certo sentido; mas não podemos simplesmente dizer o contrário: evangelizar é pregar na igreja. Evangelizar é pregar, principalmente, para os de fora, como Pedro fez no dia de Pentecoste: saindo do lugar onde estava e pregando à multidão que ainda não cria em Cristo.

IV – Minha igreja evangeliza, porque nela existe pregação bíblica”.

Se Pedro simplesmente falasse àqueles que já estavam na igreja, como o evangelho seria espalhado por todas as nações? Ele não organizou, no dia de pentecostes, um estudo bíblico sobre o profeta Joel a ser ministrado dentro do local onde estavam reunidos. 

Ele saiu para pregar.

Muitas vezes, quando falamos em evangelizar, focamos em chamar as pessoas para a igreja para, lá dentro, ouvirem o evangelho. Evangelizar, assim, é visto como sinônimo de “chamar para o culto”. Isso, na verdade, é um eco do hipercalvinismo, pois, quando afirmamos isso, o que na verdade estamos dizendo é o seguinte: “se alguém for eleito, virá até nós”. “Deus vai mandar os eleitos”. Isso é uma distorção do que a Bíblia nos ensina. Paulo escreveu: “Por isso, tudo suporto por causa dos eleitos, para que também eles alcancem a salvação que está em Cristo Jesus, com glória eterna.” (2 Timóteo 2:10). Portanto, se a sua igreja “evangeliza” apenas oferecendo pregação de qualidade àqueles que a visitam, a verdade é que ela não evangeliza.



Evangelizar é ataque! É o exército de Deus, munido da arma mais poderosa que existe, avançando contra o inferno! O próprio Jesus disse: “As portas do inferno não prevalecerão contra a Igreja”. É ir até os becos escuros e encruzilhadas, até os mancos, cegos e aleijados, arrancar nossos irmãos das trevas.

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